Tokenização de Ativos e a CVM
O mercado de criptomoedas há algum tempo deixou de ser um tema restrito a áreas menos conhecidas da internet e passou a integrar o cotidiano de empresas e investidores. Nesse novo contexto, a tokenização de ativos financeiros surge como um ponto de convergência entre o mundo tradicional e o digital.
A mesma tecnologia que possibilitou o surgimento do bitcoin (BTC) também facilitou o investimento em RWAs (real world assets), ou ativos do mundo real. Com essa nova abordagem, é possível tokenizar desde um imóvel até uma dívida, oferecendo novas oportunidades de crédito para pequenas e médias empresas, que geralmente enfrentam dificuldades em obter recursos financeiros.
Recentemente, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) lançou uma consulta pública para ouvir as opiniões de entidades do mercado e adaptar as regras existentes a este novo cenário. No segundo semestre do ano, as captações de recursos envolvendo ativos tokenizados e crowdfunding, que seguem a mesma regulamentação, movimentaram mais de R$ 2 bilhões.
Entretanto, persistem algumas incertezas, sendo a principal delas: a segurança de adquirir uma fração tokenizada da dívida de uma empresa.
Profissionais do setor, como Flavio Scarpelli, CEO da Vórtx QR Tokenizadora, Regina Pedroso, Diretora Executiva da ABToken, e José Ricardo Gaino, sócio e private banker da Blackbird Investimentos, ajudam a esclarecer essas dúvidas.
O Que É Tokenização
Para entender a tokenização, é importante reconhecer que se trata da representação digital de um ativo em um sistema de blockchain, também conhecido como sistema de registro distribuído (DLT, na sigla em inglês). Essa representação permite a negociação do ativo na rede, oferecendo a flexibilidade de criar tokens em diferentes tamanhos. Assim, empresas e entidades têm utilizado esse mecanismo para reduzir os custos associados à captação de recursos e tornar esse tipo de emissão acessível a uma gama mais ampla de investidores.
De acordo com Flavio Scarpelli, a tokenização ainda não substitui as captações de recursos tradicionais, como debêntures e certificados de recebíveis (CRIs e CRAs). Embora seja viável tokenizar uma debênture, toda a parte burocrática que envolve o processo continua a ser onerosa.
Além disso, essa mesma burocracia poderia limitar o acesso à tokenização para empresas de menor porte, mas existe uma oportunidade nesse cenário.
O ‘Pulo do Gato’ da Tokenização
Empresas que realizam captações de recursos por meio da tokenização se beneficiam de outra regulamentação da CVM, a Resolução nº 88, que regula ofertas públicas de valores mobiliários emitidos por pequenas empresas através de plataformas de investimento participativo, uma prática frequentemente associada ao crowdfunding.
Essas emissões, conforme descrito na resolução nº 88, podem ocorrer de diversas maneiras, incluindo a captação via tokenização. Contudo, existe um limite de R$ 15 milhões para emissões desse tipo, com um prazo máximo de captação de 180 dias. Somente empresas de pequeno porte, aquelas com receita bruta anual de até R$ 40 milhões e não registradas como emissoras de valores mobiliários junto à CVM, podem realizar esse tipo de emissão.
No primeiro semestre deste ano, as emissões regidas pela resolução nº 88 somaram R$ 2,2 bilhões, representando um aumento de 69% em relação ao total do ano anterior. Embora a CVM não tenha dados específicos sobre o volume de emissões realizadas por tokenização, especialistas como Regina Pedroso acreditam que esse número é subestimado. A dificuldade em consolidar dados do setor de ativos tokenizados em um único ambiente complica essa avaliação.
Para Empresas
José Ricardo Gaino, sócio e private banker da Blackbird Investimentos, ressalta a principal vantagem da emissão tokenizada: a capacidade de desenvolver produtos adaptados a cada empresa. Gaino trabalha com empresas de médio porte que geralmente têm acesso limitado a produtos financeiros com taxas mais competitivas.
No cenário tradicional, as emissões costumam ser de grandes montantes, como R$ 300 milhões ou R$ 500 milhões, o que restringe o mercado a apenas 2% das empresas brasileiras. Através da tokenização, Gaino identifica o potencial de atender a um número maior de companhias com necessidades variadas.
Para Investidores
Para os investidores, produtos tokenizados tendem a oferecer um retorno superior à média do mercado, uma vez que provêm de empresas que precisam de recursos e, portanto, estão dispostas a oferecer melhores condições. Atualmente, os tokens de dívida das empresas são negociados em plataformas de ativos digitais e corretoras de criptomoedas.
É importante notar que a perspectiva de um retorno mais alto é acompanhada de um risco elevado. No caso da emissão tokenizada, há o risco de inadimplência por parte da empresa que captou o recurso. Por isso, o investidor deve avaliar a relação entre risco e retorno antes de decidir investir em um token desse tipo.
Brechas Regulatórias
Existem questionamentos persistentes entre investidores que desejam entender melhor o mercado de tokenização. Muitas das dúvidas refletem a falta de regulamentação específica, dado que o setor ainda é bastante novo e está em constante evolução. Durante o evento Digital Assets Conference (DAC) 2025, especialistas como Antônio Marcos Guimarães do Banco Central e João Accioly, diretor-presidente da CVM, reconheceram que ambos os órgãos enfrentam desafios na classificação de tokens, o que dificulta a criação de legislações mais precisas.
De acordo com a visão do executivo do Banco Central, um projeto em tramitação no Congresso Nacional pode ampliar a definição do que é um token, mas também pode criar lacunas ao classificar debêntures como ativos digitais, desconsiderando décadas de regulamentação existente sobre esses ativos.
Ainda assim, os especialistas consideram a legislação brasileira como uma das mais avançadas em nível global, superando o conjunto de regras da União Europeia, conhecido como MiCa, e a incipiente regulação dos Estados Unidos.
Fonte: www.moneytimes.com.br